#5 – Damião Experiença – Amorzinho 1914 (2007) / Sarafina 1937 (2007) – Os 5 Discos Nacionais Mais Bizarros da Década de 2000
Damião Experiença é uma das figuras mais emblemáticas da contracultura brasileira, com uma história cheia de lacunas e imprecisões. Damião fugiu ainda criança de sua terra natal (Portão, distrito de Santo Amaro de Ipitanga - atual Lauro de Freitas -, na Bahia) para o Rio de Janeiro, por apanhar muito dos pais. Supostamente atuou como cafetão nos anos 60. Foi militar aposentado após sofrer um acidente, e produziu quase 30 discos de forma completamente independente, muitos dos quais com músicos ainda hoje não identificados.
Criou teorias sobre o
porvir, a partir do Planeta Lamma, para o qual criou uma língua própria, e fez
dreadlocks antes mesmo de Bob Marley estourar no mercado internacional. Passou
anos acumulando objetos e entulhos em seu apartamento em Ipanema, no 13º andar
de um edifício. Pude conferir isso pessoalmente nas duas visitas que fiz ao
artista, junto a Igor Colombo e Sabrina Souza: seu apartamento era praticamente
um túnel rente ao teto, realizado a partir de entulhos, no qual se andava
engatinhando entre os cômodos.
Dessas visitas, ganhamos
alguns CDs assinados pelo próprio artista. Os papos que tivemos com ele eram
surreais, descontínuos e divertidos, e não fugiam muito do espectro de
temáticas de suas letras. Eu já conhecia sua obra desde 2003/2004, após
indicação de Raul Zoboli, e já tinha comprado vários de seus LPs – os quais
acabei me desfazendo depois; pretendo retomar pelo menos um ou dois para
recordação...
Seu
primeiro álbum foi Planeta Lamma (1974), justamente incluído por Bento
Araújo em seu livro Lindo sonho delirante – 100 discos psicodélicos do
Brasil. Aí está a essência de toda a obra de Damião: língua do Planeta
Lamma, fluxo musical aleatório, explorações vocais exageradas, e temáticas e
reflexões bizarras. Damião canta e toca um violão bem desconstruído e uma gaita
estranha, como se fosse um Bob Dylan dos infernos. Este foi o primeiro dos
cerca de 25 álbuns que o artista lançou entre 1974 e 1992; dentre estes, foram
exploradas outras formações, muitas das quais com bandas de músicos
profissionais anônimos.
Após um
hiato de 15 anos, o artista lança, em 2007, Amorzinho 1914 e Sarafina
1937, bem no estilo de seu álbum de estreia. A grande diferença é que, ao
invés de faixas com extensões mais tradicionais, cada um desses álbuns é
composto por uma única faixa, com cerca de 40 minutos de duração. Nunca o
artista tinha feito faixas tão longas, ainda mais em um único take, sem
interrupções. Os títulos se referem aos nomes de seu pai e de sua mãe, e suas respectivas
datas de nascimento.
Amorzinho
1914 tem, supostamente,
14 “partes”: Planeta Lamma, Cosmo, Daminhão, Damião
Ferreira da Cruz, Adolfo Hitler, Travestis, Vestido, Kamelo,
Prostituta, Apto. 1308, Tomate, Isabelita Peron, EvaBraunHitler
e Daminhão Experiença. Sarafina 1937 tem, supostamente, 15
“partes”: Daminhão Experiença, Pé, Dedo, Carne, Flor,
Dente, Cebola, Tomate, Alho, Selo, Carta,
Fumaça, Cachorro, Caixão e Damião Ferreira da Cruz.
Em Amorzinho
1914, Damião apresenta suas credenciais, alega que o destino de todos é
estar a 27 palmos embaixo da lama, e entoa seus cânticos na língua do Planeta
Lamma. É muito certeiro ao afirmar que “A língua das pessoa são mais sujo de
que as droga / Porque as droga elas são medicinal”, logo antes de saudar a
morfina e a heroína. Há aqui os vocais gritados, quase guturais, que emulam a
emblemática Planeta Lamma, faixa título de seu álbum de estreia. Em
resumo, Damião apresenta seus devaneios reflexivos aleatórios de sempre, a partir
de temáticas recorrentes: ufanismos e utopias, desigualdades sociais, repressão
policial, discursos contra a ditadura, ativismo contra o aborto, saudação a
ditadores, vida de cafetão, etc. Uma bagunça total, em partes “politicamente
incorreta”, mas em discurso totalmente coerente com o que o artista cantava
desde os anos 70.
Lá pelas
tantas, Damião desabafa sem máscaras, em um raro momento: “Som acústico... bem
fraco... eu tô nervoso, com a cabeça cheia de pobrema”. A seguir, o teor sexual
bizarro toma conta: “As pessoa que chupa a boca das outras pessoa / São pessoa
viciada fazer ‘sécu’ pela boca”. Este é ainda maior evidenciado em suas
soluções práticas para evitar o aborto, ou quando lamenta a mudança de sua
vizinha querida.
Sarafina
1937 é levemente
superior ao álbum anterior, embora muito similar na sonoridade e temáticas.
Aqui, as reflexões sexuais são ainda mais bizarras, culminando na fixação do
artista por mulheres lésbicas e em frases gratuitamente violentas, como “Eu
quero casar com essa vagabunda”. Brilham também, nesse álbum, os momentos
maravilhosos de pseudo francês, pois soam melhores que muitos exemplos da
galera indie brasileira cantando (muito mal) nesse idioma.
Amorzinho
1914 e Sarafina 1937
foram os últimos álbuns de originais da extensa discografia de Damião
Experiença, que faleceu em dezembro de 2016. Em seu enterro compareceram apenas
duas pessoas - underground até em seu derradeiro momento.
Observação
final: além de seu álbum de estreia, Planeta Lamma (1974), destacamos
também, de sua discografia, Damião Experiença no Planeta Lavoura, que
apresenta reflexões sensíveis sobre as “muleres protistuta”, apontamentos sobre
as posições do “1969” e do “1999”, e muitas
bizarrices sexuais.
Texto revisado por Sabrina Souza
Crédito das Imagens: Damião Experiença – Amorzinho 1914 (2007) / Sarafina 1937 (2007) / Fotos da visita a Damião Experiença (2011) – Fontes (respectivamente): Damião Experiença – Portão do Damião / Acervo pessoal (fotos Renan Simões e Igor Colombo)
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