Damião Experiença - Álbum Inédito [?] (2011)
Damião Experiença foi uma figura icônica da música, com uma
história repleta de mistérios e lacunas, o que foi muito potencializado por seu
estado mental atípico e por seus tópicos/ideias fixas que permearam suas letras.
Lançou muitos LPs de forma independente, com um som altamente único e fora dos
padrões, muitas vezes contando com a participação de músicos excelentes - dos
quais ainda hoje não sabemos a identidade. Em 2007, lançou seus últimos
trabalhos, os únicos em CD, 15 anos após seus dois LPs derradeiros, de 1992;
estes CDs constam em minha lista dos discos nacionais mais bizarros da década
de 2000:
Em maio de 2011, meu irmão e eu viajamos para o Rio de
Janeiro para assistir a um show do Paul McCartney. Igor, meu irmão, ainda tinha
12 anos de idade; eu tinha 22. Dois beatlemaníacos confessos, nos deleitamos
com a perfeição técnica e musical do show - ainda que meu irmão estivesse meio
adoentado, o que o baqueou um pouco. Entretanto, este foi apenas um dos dois
ícones da música que conhecemos na viagem.
Mais cedo, nesse mesmo dia, fomos em busca de Damião
Experiença. Claro, esse foi um programa praticamente imposto por mim. Seguimos
até o endereço dele, conforme informado pelo criador do site do artista, mas
nos disseram que ele havia saído, e que talvez retornaria em breve. Ao
regressar mais tarde, esbarramos com Damião saindo pelo portão; quando eu disse
que éramos fãs dele (falando por mim), ele amigavelmente fez sinal para que o
acompanhássemos.
A casa de Damião, no 13º andar de um edifício, era cheia de
entulhos que o músico acumulava há décadas, o que fazia com que o trajeto fosse
um corredor que você andava se engatinhando rente ao teto. Em um segundo
cômodo, havia mais espaço, quase que para ficar em pé, mas ainda próximo ao
teto. Tiramos algumas fotos para registrar o momento. Nesse segundo cômodo,
havia uma TV, equipamentos e vários cabos.
Perguntei a Damião se ele ainda tinha LPs para nos vender,
e ele alegou que não. Em meio ao entulho, vi um único LP: uma cópia de Sonho
70, de Egberto Gismonti. Damião tinha em mãos, desde quando o
abordamos, diversos CDs e DVDs graváveis da marca Bulk, e começou a
autografá-los para nos presentear. Foram seis cópias de CDs e três de DVDs;
fiquei com quatro cópias dos CDs e duas dos DVDs, pois dei um DVD e dois CDs
para meu amigo e influencer Raul Zoboli, que me apresentou a música de Damião.
Dos que fiquei, dois CDs traziam músicas do artista e dois estavam em branco. O
DVD é de um show de Damião com uma banda, talvez o único que tenha ocorrido.
Só agora, em 2025, é que constatei que o conteúdo dos CDs
não corresponde a nenhum dos álbuns presentes no site oficial do artista e a
nenhum outro que encontrei na internet, incluindo os da plataforma Discogs e a
compilação das obras completas do artista pela Gorilla’s Records, de 2021. Pela
sonoridade, parecem gravações mais antigas. Talvez seja uma coletânea e/ou
inclui músicas inéditas. Cadastrei o álbum no Discogs e o inseri no YouTube,
para que alguém me ajude na busca por informações sobre essas músicas.
Este CD, com pouco mais de uma hora de duração, possui 9
faixas separadas, embora algumas abarquem seções bem diferentes, o que é muito
característico do artista; há também conteúdos musicais que se repetem em faixas
diferentes. A sonoridade geral é de um hard rock bem intenso e caótico, e
possui algumas levadas mais funkeadas. O centro de tudo é quase sempre o
próprio Damião Experiença, cantando suas letras aparentemente absurdas e
desconexas, ou mesmo no dialeto que ele criou, supostamente falado no Planeta
Lamma - local também criado/idealizado pelo artista.
A faixa de abertura, instrumental, dá o tom do trabalho:
riff e solos bem incisivos de hard rock e cortes mal feitos (muito
provavelmente propositais), o que gera algumas alterações bruscas de andamento.
A segunda faixa, com 21 minutos de duração, compreende quatro seções
diferentes. A primeira, com 9 minutos, apresenta Damião cantando no dialeto do
Planeta Lamma. A segunda irrompe em um riff bem funkeado e com uma letra que
reforça o machismo brutal de Damião, tão presente em sua obra: ele quer uma
mulher para fazer comida pra ele e para lhe dar banho, mas quer que ela seja
virgem, pois não quer mulher “usada”. Há ainda outras duas seções diferentes antes
do término da música.
A terceira faixa mescla muito bem o hard e o funk, com
letra sobre a paranoia de ser sempre vigiado pelo governo, outro tópico muito
recorrente em seu trabalho. A seguir, um corte brusco dá espaço a uma base de
baião rockeira. Na quarta faixa, uma das mais longas (10 minutos), o artista
alega que nasceu na União Soviética, e que é filho de pais guerrilheiros e
revolucionários; a mãe é cubana, e o pai, soviético.
Após outra música de hard funkeado, com Damião cantando no
dialeto do Planeta Lamma, a sexta faixa retoma o riff da primeira. A impressão
que fica é que a primeira música é igual à sexta, porém com o corte das partes
cantadas. A temática: jogo de cartas e “cartas na mesa”, o que também aparece
de vez em quando em seus álbuns.
As curtíssimas faixas 7 e 8 contrastam com as demais, que
são mais longas. A oitava é apenas uma breve reprise, de menos de 30 segundos,
do mesmo riff das músicas 1 e 6. Ao final, a nona faixa retoma também um riff
já utilizado, e Damião “canta” incansavelmente por quase 9 minutos em seu
dialeto criado.
No início de 2015, em uma viagem ao Rio de Janeiro, fui de
novo em busca de Damião, desta vez acompanhado por Sabrina Souza. Mal
conseguimos entrar na casa dele, pois os objetos obstruíam cada vez mais o
espaço, o que quase impedia que lá coubessem três pessoas ao mesmo tempo. Dessa
vez não houve nem fotos e nem CDs. As conversas, como da vez passada, sempre
envolviam tópicos que também estão presentes em suas letras.
Em dezembro de 2016, ele faleceu; foi noticiado que apenas uma vizinha foi a seu enterro. Damião Experiença foi a perfeita tradução do que é ser um artista underground, marginal, único, contraditório e transgressor, mesmo com ideias muitas vezes retrógradas e condenáveis.
Clique aqui pra ouvir o álbum completo no YouTube
Texto revisado por Myrna Barreto
Crédito das imagens: fotos de Renan Colombo Simões e Igor Colombo Simões






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